Acorda.
Num caminho sinuoso, tal como o
nosso desengano, encontro varandas carregadas de beijos abandonados, vielas mal
iluminadas que empurram o corpo para lá, ruas de abraços desencontrados.
Memórias. – Cala-te lá rapaz – digo numa surdina que nem a mim próprio convence:
– Uma rua onde ainda não passei. - Toda a mente em rebuliço. -
Caminhar é terapêutico, Caminhar é terapêutico.. – mantra.
Parou junto de uma
janela, a luz estava baixa mas dava muito bem para perceber o que se passava,
era a dança de dois amantes.
- Curioso.
Os corpos balançavam um sobre o
outro, as roupas já jaziam pelo chão e dá para entender os abusos que já haviam
passado, não dava para ver muito bem as caras mas ela era uma bela miúda que
trabalhava numa loja de meias onde passava todos os dias, ficava numa esquina
onde se vendem castanhas e jornais, onde se reúnem sempre grupos de pessoas
muito eterogeneros, desde o pedinte do vinho à mais bela armação de laca de Lulu
ao colo e por incrível que pareça, de aí não existem recordações como no resto
da cidade, mas verdade seja dita:
- Muito bela, a miúda. Caminhemos
novamente.
Apenas vinte passos à frente está
uma mercearia aberta com vários litros de cerveja gelada, agarro em duas SuperBock de litro e peço uma garrafa espalmada de Bushmill's, um Ventil e um livro
de mortalhas, já se sabe.
O tipo responde num dialecto
muito próprio, que só os Bangladeshianos têm, que são 19€:
- Fodasse, lá se vai o orçamento,
está feita a noite.
- Dézanovi euro, por favôr.
- Está bem, está bem. – Enquanto
começo a por o produto na mochila deixando uma cerveja de fora, para o caminho.
Esta cidade até tem qualquer
coisa:
- Pelo menos há cerveja! – Dito
em plenos pulmões.
Um caminho novamente familiar,
malditas pedras da calçada, por vezes só me apetece é arrancá-las e atirá-las a
janelas anónimas. – Caminha, caminha, ali à
frente já não há nada. – Novamente uma janela aberta, paro e olho
tranquilamente, uma família típica está a emburrecer em frente á televisão,
pior, é aquela treta da qual absorvo oito horas por dia, ainda bem que existem
drogas, agora sabe bem a cerveja.
- Segue o caminho.
Luzes em andares altos, esta
cidade tem esta particularidade podemos espreitar as janelas mesmo quando estão
no alto, basta esperar um pouco, dá para ver sombras, e imaginar o que se
passa, estará a ler um livro, a escrever cartas ou a pintar?! Poderá só estar
contemplar o vazio ou simplesmente estar a dormir, em paz.
- Olha, também me lembro desta
rua, ainda mais desta calçada.
Outra memória, uma mais distante
mas não tanto, ainda à pouco tempo calcava aquelas ruelas, ruas estreitas e mal
iluminadas, senhoras de idade indestinguivel sempre à janela, drogas oferecidas
pela malta que habita as ruas a beber cerveja e se esconde em casa da avó caso
apareça a bófia. E uma velha porta vermelha, sem campainha, uma casa forrada a
madeira, escadas íngremes e um janelão enorme com vista para a cozinha do
vizinho e uma nesga de céu, a bem ver dali todo o céu se viu e o único a vê-lo
não o fui, muitos por lá já passaram bons tempos. Um ninho, para mim e para ti,
onde já fui feliz, muito feliz, onde apenas uma persiana nos separava do mundo,
a ultima casa antes daquela cama.
- Que raio, já estou na Madragoa,
não me lembro de chegar aqui. – Enquanto tenta retirar o uísque da mochila. – Esta
treta deste crachá. Está-me a escafiar a camisola. – Um olhar breve e
rapidamente abandono a ideia. Um trago forte no uísque e lá vai um terço. –
Ah!.. Alento.
Nova garrafa de cerveja aberta,
mais um Ventil aceso:
- Que bom, mesmo na hora certa
para abrir mais um maço. Continuemos a caminhada.
O ritual de abrir o maço já é o
mesmo desde sempre quatro ou cinco pancadinhas que tenho o dedos irrequietos e
está-me sempre a cair o borrão, plástico apenas aberto onde interessa e o papel
cuidadosamente rasgado. O lixo, juntamente com as beatas que agora não consigo
mandar para o chão, para o bolso do casaco, que agora anda pendurado na alsa da
mochila. O calor aperta nesta noite fria,
talvez seja do álcool, não sei, sinto a noite quente, ou o corpo frio, não
interessa:
- Caminhemos..
Ruas desertas, parece que a noite
já avançou e ele nem deu por nada, como incrível é o tempo, coisa tão abstracta
e ao mesmo tempo tão castradora. Não tarda pode nascer o sol e ainda não vai
nem a meio do caminho.
Esta rua é estranha, vejo uma
casa ladeada por prédios de idade indefinida,
- antes do terramoto – pensei. Parece a casa da mariquinhas, abano a
cabeça e lembro a cantiga pelo velho e saudoso Marceneiro, um sorriso por esta
memória e continuo.
- Raio, não há mais cerveja, vamos
acabar com o Bushmill's junto ao rio, que se foda a memória, vou fazendo um pelo
caminho.
Evitando aquela avenida onde
recebi um abraço que ficará eterno, da vez que vieram ter comigo pela
madrugada, quão belo fora o poema. Que coisa, aquele momento foi melhor que
aquele beijo roubado à porta da casa de meus pais, num encontro que quase foi
desencontro, ela veio de longe para o fazer e eu não estava, tinha ido
alimentar um vicio que já desde essa altura me atormenta, as drogas sempre
foram uma forma de isolar o meu mal do bom, de adormecer as vozes que me
instigam a vilanar por aí, por isso quase perdia o encontro, esse belo encontro
de há mais de doze anos atrás, o primeiro beijo de amor. Apenas aquele abraço, junto a um atelier de design duvidoso, com vista para os comboios, no meio da calçada,
num suor frio, que nem o sentimos. Tal era o correr dos nossos peitos, memória.
Ele tentou não pensar mais nisso,
a memória alegre tinha tanto de boa como de mortificante e a caminhada ainda se
avistava longa, já haviam boas horas passado e os quilómetros foram longos,
mais longos seriam de volta ao quarto alugado onde habita, onde vive sempre
calçado e com tudo pronto para a fuga, - Só falta mesmo fechar-se a porta. –
caixas de coisas úteis, uma caixa de coisas inúteis que pode ser deixada, uma
mala de ferramenta que repara tudo menos a alma, umas guitarras e mais umas
coisas pequenas, que cabem nua caixa que tem que comprar, um saco com a roupa
gasta e está feita a fuga, agora só falta mesmo
o resto.
- Junto ao rio, finalmente.
Este
rio não tem memórias aqui. Penso em sentar mas algo me impele em frente, - Continua a caminhada. - sem pensar muito nisso, passo por armazéns e o que
parecem clubes de vela com velhas maquinas ferrugentas, esqueletos de ferro sujo,
um tipo passeia um bicho estérico pela madrugada, coitado deve passar os dias
fechado.
- Enfim.. Comboios!
Gosto destes comboios, já me
levaram e trouxeram em azafama e paz, tenho alguma saudade de andar neles –
Talvez amanhã.. agora a caminhada. – Vejo uns bancos em tudo desconfortáveis,
quem terá tido esta excelente ideia de por bancos sem qualquer tipo de ergonomia
e depois uma árvore seca a sair do meio.. Enfim, acho que fui eu que as paguei
mas não me sento neles, prefiro o muro de pedra, os tubos de respiração da barreira
fazem sons curiosos e interessantes conforme o andar das marés e o reboliço no
rio, oiço-os como se fossem uma composição que a natureza me está a oferecer,
olho para a praça e lembro os dinossauros adormecidos por baixo da relva, cada
vez que vejo um monte relvado penso nisso, obrigado por esta memória, é
divertida. Volto ao rio, já há luz a vir no horizonte, no final da garrafa de
uísque o céu está entre o azul e o escarlate, dividido por uma fina camada de
nuvens que difundem a luz de uma forma muito especial, o rio está espelhado, tal
como o desassossego está espelhado em mim com esta memória, rapidamente vou à
mochila e olho a foto que trago à imenso comigo.
- Fodasse, fodasse, ah! Raios
parta..
Nesta altura arruma rapidamente o
que traz consigo, a fotografia, os telefones que nunca tocam, o caderno dos
rabiscos, a garrafas e todos os despojos do consumo, anda rapidamente e sem
destino aparente, assombrado e a pensar forte e talvez até a falar em bom som:
– Caminha e respira, caminha e
respira, pensa em baldes de merda, caminha e respira, acende mais um cigarro
vamos lá, era para isto esta caminhada. Já o sabias, não o podes negar. Caminha
e respira, caminha e respira..
O sol já irradia do baixo alto e
as pessoas estão apressadas para os seus caminhos, é a tipa que ainda cheira a
champô barato, são os bolos da Brasileira, as perfumarias que vão abrindo pela
Rua do Carmo, o cheiro quente e agradável do café Nicola, mas de certeza que
naquela altura ira-a-lhe apenas saber a fracasso, até que o cheiro irresistivel
do caril e dos cominhos lhe subiu à mente, estava no Martim Moniz.
- Estou aqui?! Bem, uma chamuça e
uma cerveja.
Enquanto lentamente me vou
alimentado deixo os pensamentos fluir, deixo ir para prados verdes, para
momentos em que estar ainda fazia sentido, para os momentos de abandono, para
os caminho que percorro, enfim, em tudo e em nada, luto gravemente para não
voltar subir a ladeira pois posso muito bem aguentar isto, uma vez já chega, o
susto, por vezes só é preciso um susto, bate com força peito, o pior que poderá
acontecer é rebentar, quem ensinou que não se pode sucumbir de um coração
partido foi porque nunca amou.
- Vou dormir.
Uma caminhada curiosa, regada de
mulheres que se insinuam à espera de uns trocos, e eu num passo apressado, mercearias abertas com mais
cerveja fria, e eu num passo apressado, calçadas sem lembrança, e eu num passo
apressado, homens podres pedindo vinho, e eu num passo apressado, pessoas
abandonadas a vaguear pela rua que as acaricia, e eu num passo apressado, uma
praça ruidosa mas de agradável encanto, e eu num passo apressado e em vista um
prado verde, parei. Tão perto, mesmo ao lado de minha cama, um prado onde já corri e
hoje tenho receio de ir, mentira, vou lá todos os dias, lembrar e esquecer.
- Antes de ir tenho que deixar
algo.
Com um passo ainda mais acelerado dirige-se
ao fundo da rua, olha a varanda que um dia ousou ser sua, tal como Icaro quis voar perto do Sol. Concentrou-se no sitio
onde ela adormece e deixou mais um beijo.
Já na cama e com o peito em fogo
disse num tom de voz quase inaudível:
- Boa noite, varandas carregadas
de beijos e ruas de abraços desencontrados.
Adormeceu. Louco.
Chamuça e cerveja Ahahaha!
ResponderEliminaróóóó Réco!
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