quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Adormece. Louco.



Acorda.
Num caminho sinuoso, tal como o nosso desengano, encontro varandas carregadas de beijos abandonados, vielas mal iluminadas que empurram o corpo para lá, ruas de abraços desencontrados. Memórias. – Cala-te lá rapaz – digo numa surdina que nem a mim próprio convence: 
– Uma rua onde ainda não passei. - Toda a mente em rebuliço. - Caminhar é terapêutico, Caminhar é terapêutico.. – mantra. 
Parou junto de uma janela, a luz estava baixa mas dava muito bem para perceber o que se passava, era a dança de dois amantes.
- Curioso.
Os corpos balançavam um sobre o outro, as roupas já jaziam pelo chão e dá para entender os abusos que já haviam passado, não dava para ver muito bem as caras mas ela era uma bela miúda que trabalhava numa loja de meias onde passava todos os dias, ficava numa esquina onde se vendem castanhas e jornais, onde se reúnem sempre grupos de pessoas muito eterogeneros, desde o pedinte do vinho à mais bela armação de laca de Lulu ao colo e por incrível que pareça, de aí não existem recordações como no resto da cidade, mas verdade seja dita:
- Muito bela, a miúda. Caminhemos novamente.
Apenas vinte passos à frente está uma mercearia aberta com vários litros de cerveja gelada, agarro em duas SuperBock de litro e peço uma garrafa espalmada de Bushmill's, um Ventil e um livro de mortalhas, já se sabe.
O tipo responde num dialecto muito próprio, que só os Bangladeshianos têm, que são 19€:
- Fodasse, lá se vai o orçamento, está feita a noite.
- Dézanovi euro, por favôr.
- Está bem, está bem. – Enquanto começo a por o produto na mochila deixando uma cerveja de fora, para o caminho.
Esta cidade até tem qualquer coisa:
- Pelo menos há cerveja! – Dito em plenos pulmões.
Um caminho novamente familiar, malditas pedras da calçada, por vezes só me apetece é arrancá-las e atirá-las a janelas anónimas. ­– Caminha, caminha, ali à  frente já não há nada. – Novamente uma janela aberta, paro e olho tranquilamente, uma família típica está a emburrecer em frente á televisão, pior, é aquela treta da qual absorvo oito horas por dia, ainda bem que existem drogas, agora sabe bem a cerveja.
- Segue o caminho.
Luzes em andares altos, esta cidade tem esta particularidade podemos espreitar as janelas mesmo quando estão no alto, basta esperar um pouco, dá para ver sombras, e imaginar o que se passa, estará a ler um livro, a escrever cartas ou a pintar?! Poderá só estar contemplar o vazio ou simplesmente estar a dormir, em paz.
- Olha, também me lembro desta rua, ainda mais desta calçada.
Outra memória, uma mais distante mas não tanto, ainda à pouco tempo calcava aquelas ruelas, ruas estreitas e mal iluminadas, senhoras de idade indestinguivel sempre à janela, drogas oferecidas pela malta que habita as ruas a beber cerveja e se esconde em casa da avó caso apareça a bófia. E uma velha porta vermelha, sem campainha, uma casa forrada a madeira, escadas íngremes e um janelão enorme com vista para a cozinha do vizinho e uma nesga de céu, a bem ver dali todo o céu se viu e o único a vê-lo não o fui, muitos por lá já passaram bons tempos. Um ninho, para mim e para ti, onde já fui feliz, muito feliz, onde apenas uma persiana nos separava do mundo, a ultima casa antes daquela cama.
- Que raio, já estou na Madragoa, não me lembro de chegar aqui. – Enquanto tenta retirar o uísque da mochila. – Esta treta deste crachá. Está-me a escafiar a camisola. – Um olhar breve e rapidamente abandono a ideia. Um trago forte no uísque e lá vai um terço. – Ah!.. Alento.
Nova garrafa de cerveja aberta, mais um Ventil aceso:
- Que bom, mesmo na hora certa para abrir mais um maço. Continuemos a caminhada.
O ritual de abrir o maço já é o mesmo desde sempre quatro ou cinco pancadinhas que tenho o dedos irrequietos e está-me sempre a cair o borrão, plástico apenas aberto onde interessa e o papel cuidadosamente rasgado. O lixo, juntamente com as beatas que agora não consigo mandar para o chão, para o bolso do casaco, que agora anda pendurado na alsa da mochila. O calor aperta nesta noite fria, talvez seja do álcool, não sei, sinto a noite quente, ou o corpo frio, não interessa:
­- Caminhemos..
Ruas desertas, parece que a noite já avançou e ele nem deu por nada, como incrível é o tempo, coisa tão abstracta e ao mesmo tempo tão castradora. Não tarda pode nascer o sol e ainda não vai nem a meio do caminho.
Esta rua é estranha, vejo uma casa ladeada por prédios de idade indefinida,  - antes do terramoto – pensei. Parece a casa da mariquinhas, abano a cabeça e lembro a cantiga pelo velho e saudoso Marceneiro, um sorriso por esta memória e continuo.
- Raio, não há mais cerveja, vamos acabar com o Bushmill's junto ao rio, que se foda a memória, vou fazendo um pelo caminho.
Evitando aquela avenida onde recebi um abraço que ficará eterno, da vez que vieram ter comigo pela madrugada, quão belo fora o poema. Que coisa, aquele momento foi melhor que aquele beijo roubado à porta da casa de meus pais, num encontro que quase foi desencontro, ela veio de longe para o fazer e eu não estava, tinha ido alimentar um vicio que já desde essa altura me atormenta, as drogas sempre foram uma forma de isolar o meu mal do bom, de adormecer as vozes que me instigam a vilanar por aí, por isso quase perdia o encontro, esse belo encontro de há mais de doze anos atrás, o primeiro beijo de amor. Apenas aquele abraço, junto a um atelier de design duvidoso, com vista para os comboios, no meio da calçada, num suor frio, que nem o sentimos. Tal era o correr dos nossos peitos, memória.
Ele tentou não pensar mais nisso, a memória alegre tinha tanto de boa como de mortificante e a caminhada ainda se avistava longa, já haviam boas horas passado e os quilómetros foram longos, mais longos seriam de volta ao quarto alugado onde habita, onde vive sempre calçado e com tudo pronto para a fuga, - Só falta mesmo fechar-se a porta. – caixas de coisas úteis, uma caixa de coisas inúteis que pode ser deixada, uma mala de ferramenta que repara tudo menos a alma, umas guitarras e mais umas coisas pequenas, que cabem nua caixa que tem que comprar, um saco com a roupa gasta e está feita a fuga, agora só falta mesmo  o resto.
- Junto ao rio, finalmente.
Este rio não tem memórias aqui. Penso em sentar mas algo me impele em frente, - Continua a caminhada. - sem pensar muito nisso, passo por armazéns e o que parecem clubes de vela com velhas maquinas ferrugentas, esqueletos de ferro sujo, um tipo passeia um bicho estérico pela madrugada, coitado deve passar os dias fechado.
 - Enfim.. Comboios!
Gosto destes comboios, já me levaram e trouxeram em azafama e paz, tenho alguma saudade de andar neles – Talvez amanhã.. agora a caminhada. – Vejo uns bancos em tudo desconfortáveis, quem terá tido esta excelente ideia de por bancos sem qualquer tipo de ergonomia e depois uma árvore seca a sair do meio.. Enfim, acho que fui eu que as paguei mas não me sento neles, prefiro o muro de pedra, os tubos de respiração da barreira fazem sons curiosos e interessantes conforme o andar das marés e o reboliço no rio, oiço-os como se fossem uma composição que a natureza me está a oferecer, olho para a praça e lembro os dinossauros adormecidos por baixo da relva, cada vez que vejo um monte relvado penso nisso, obrigado por esta memória, é divertida. Volto ao rio, já há luz a vir no horizonte, no final da garrafa de uísque o céu está entre o azul e o escarlate, dividido por uma fina camada de nuvens que difundem a luz de uma forma muito especial, o rio está espelhado, tal como o desassossego está espelhado em mim com esta memória, rapidamente vou à mochila e olho a foto que trago à imenso comigo.
- Fodasse, fodasse, ah! Raios parta..
Nesta altura arruma rapidamente o que traz consigo, a fotografia, os telefones que nunca tocam, o caderno dos rabiscos, a garrafas e todos os despojos do consumo, anda rapidamente e sem destino aparente, assombrado e a pensar forte e talvez até a falar em bom som:
– Caminha e respira, caminha e respira, pensa em baldes de merda, caminha e respira, acende mais um cigarro vamos lá, era para isto esta caminhada. Já o sabias, não o podes negar. Caminha e respira, caminha e respira..
O sol já irradia do baixo alto e as pessoas estão apressadas para os seus caminhos, é a tipa que ainda cheira a champô barato, são os bolos da Brasileira, as perfumarias que vão abrindo pela Rua do Carmo, o cheiro quente e agradável do café Nicola, mas de certeza que naquela altura ira-a-lhe apenas saber a fracasso, até que o cheiro irresistivel do caril e dos cominhos lhe subiu à mente, estava no Martim Moniz.
- Estou aqui?! Bem, uma chamuça e uma cerveja.
Enquanto lentamente me vou alimentado deixo os pensamentos fluir, deixo ir para prados verdes, para momentos em que estar ainda fazia sentido, para os momentos de abandono, para os caminho que percorro, enfim, em tudo e em nada, luto gravemente para não voltar subir a ladeira pois posso muito bem aguentar isto, uma vez já chega, o susto, por vezes só é preciso um susto, bate com força peito, o pior que poderá acontecer é rebentar, quem ensinou que não se pode sucumbir de um coração partido foi porque nunca amou.
- Vou dormir.
Uma caminhada curiosa, regada de mulheres que se insinuam à espera de uns trocos, e eu num passo apressado, mercearias abertas com mais cerveja fria, e eu num passo apressado, calçadas sem lembrança, e eu num passo apressado, homens podres pedindo vinho, e eu num passo apressado, pessoas abandonadas a vaguear pela rua que as acaricia, e eu num passo apressado, uma praça ruidosa mas de agradável encanto, e eu num passo apressado e em vista um prado verde, parei. Tão perto, mesmo ao lado de minha cama, um prado onde já corri e hoje tenho receio de ir, mentira, vou lá todos os dias, lembrar e esquecer.
- Antes de ir tenho que deixar algo.
Com um passo ainda mais acelerado dirige-se ao fundo da rua, olha a varanda que um dia ousou ser sua, tal como Icaro quis voar perto do Sol. Concentrou-se no sitio onde ela adormece e deixou mais um beijo.
Já na cama e com o peito em fogo disse num tom de voz quase inaudível:
- Boa noite, varandas carregadas de beijos e ruas de abraços desencontrados.
Adormeceu. Louco.

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